Crônicas

Spoiler a contragosto

Henzo Felisberto, com agá, por favor, nunca gostou de spoilers. Quem conviveu com ele sabe disso. Ninguém se atrevia a lhe contar algo de antemão ou lhe adiantar o assunto. Era avesso a trailers de filmes, orelhas de livros e introduções. Nunca foi público para a fofoca e achava que a experiência perdia muito nessas antecipações indevidas. O comportamento de Henzo Felisberto afastava, talvez, uns quatro quintos da população, era um moço difícil, pra dizer a verdade, com agá. Se chamava Henzo Felisberto, com agá, por favor, porque, apesar de tudo, nunca foi descortês. Educou-se ao último grau em todas as instâncias adequadas para pessoas da sua estirpe.

Nos registros, consta que Henzo Felisberto, com agá, por favor, foi por três anos goleiro do Não Me Conte Futebol Clube. Era um bom arqueiro, apesar de falhar nas bolas aéreas, vez ou outra. Além disso, conta com a triste marca de jamais ter defendido um pênalti porque se negava a estudar o batedor. Dizia preferir a surpresa. Coisas do futebol, sabe como é. Pois bem. Parou de jogar quando tentaram-no ludibriar para uma combinação de resultado. Afinal, se perguntava, como poderiam jogar assim? Conflitos existenciais pareciam não ser recorrentes na ética defeituosa do restante do time. Uma vergonha, de fato. Abandonou o esporte para se concentrar em atividades de princípios mais firmes.

Com agá, por favor, Henzo Felisberto tinha um verdadeiro orgasmo espiritual quando encontrava certos avisos, tais como: Nota do editor: os leitores que ainda não conhecem o livro devem levar em conta que detalhes do enredo serão revelados nessa introdução”, ou ainda, quando havia alerta de spoiler no título da publicação, de preferência em vermelho, bem visível. Pois é, ninguém gosta de ser pego desprevenido. Henzo Felisberto, com agá, por favor, sempre primou pela experiência, pela emoção, pela surpresa. Acreditava que nenhuma palavra, indicação ou comentário tinha o direito de suprimi-lo dessa vivência. Um filósofo incompreendido, diriam alguns. Um otário, muitos outros. Eis que numa manhã de terça-feira, Henzo Felisberto, com agá, por favor, ia para o trabalho no seu Peugeot 206 enquanto o celular tocava incessantemente. Moço sério, centrado, jamais atenderia no trânsito, retornaria depois, quando estacionasse em frente ao departamento. Ouviu a marcha fúnebre noticiando um falecimento no rádio.

Desligou-o de supetão. Na verdade, nem sabia porque ainda conectava aquela estação. Pegara o hábito da avó, talvez. Só quando parou em frente ao trabalho é que percebeu ter recebido dezenas de ligações, provindas da família, dos parcos amigos, dos colegas de trabalho, até dos antigos e antiéticos companheiros de time. Então, sem pensar muito, notou que a morte anunciada tinha relação com aquelas chamadas todas. Infelizmente, concluiu, alguém próximo havia falecido. As pessoas insistiam numa tentativa esdrúxula de avisá-lo.

Mas, por favor, com agá, Henzo Felisberto não passaria por isso. Descobriria o defunto diretamente no velório. Teria uma experiência única, como só um mestre em evitar spoilers poderia conceber. Coisa de gênio, diga-se de passagem.

Tratando-se de alguém tão próximo, lhe dariam folga no trabalho. Nem chegou a sair do carro, depois ligaria direto do velório para o chefe, explicaria tudo e receberia os pêsames. Desligou o celular e voltou para casa num oblíquo regozijo, fez cada curva do trajeto com a curiosidade de um turista, como se não conhecesse a própria cidade, tudo se mostrava novo, as fachadas dos comércios, as calçadas, as pessoas caminhando, as faixas de pedestres, o sinal vermelho, amarelo e verde. Um tempero reluzente dava a Henzo Felisberto, com agá, por favor, um espanto de recém-chegado. Entrou sorrindo no apartamento, preparou e bebeu devagar um chá preto, precisava dar tempo ao tempo. Pelo horário, o corpo ainda era preparado na funerária. Em uma hora ou duas o velório iniciaria. Vestiu o seu melhor terno com uma gravata azul bebê, nada muito chamativo. Esses eventos requerem uma formalidade discreta, embora nem todos saibam disso. Mediu-se paciente no espelho, não gostaria de aparecer desalinhado.

Excitado com a experiência, mesmo fugindo do seu feitio, não deixou de confabular sobre o defunto: A morte do pai causaria uma discussão tremenda com a irmã sobre a divisão da herança. O irmão Erberth, com agá derradeiro, nesse caso, já deveria estar cuidando dos processos burocráticos. A irmã Eloísa, sem agá, mora longe e não está apta a debater o assunto de forma plausível. A morte da mãe o obrigaria a encontrar outra pessoa para lavar e passar suas camisas toda semana. Além disso, provocaria um efeito nocivo ao pai, que provavelmente morreria em seguida. O papo desconfortável com Eloísa, sem agá, e Erberth, com agá derradeiro, era iminente.

Poderia, claro, não ser alguém da família. Se for o Ugo, estranhamente sem agá, ficaria decepcionado, afinal, é personal trainer e dá aulas de spinning como ninguém. Estranharia mesmo se a causa mortis fosse um enfarte fulminante. Se for a Martinha, sem agá nem clima para hora agá, ficaria também desiludido. Ela pululou as fantasias sexuais de Henzo a vida inteira, mas nunca lhe deu abertura para uma interação mais aguda, por assim dizer. Há poucos meses vinham tendo uma breve aproximação. E voltou a fantasiar cenas quentes com ela, embora seus princípios também argumentassem contra spoilers sexuais imaginários. A esperança, por fim, é a última que morre, mas com a necrofilia fora de questão, morreria também, mesmo que por último. E sua história com a Martinha terminaria sem agá, ou hora agá, melhor dizendo.

Henzo Felisberto, com agá, por favor, chegou ao velório com borboletas no estômago, não ergueu os olhos, pois não queria ser abordado com histórias do morto antes de descobri-lo nem ser traído pelo olhar. Aquele seria o espanto máximo e, por um segundo, quase não suportou a ansiedade. Seguiu firme mirando os pés até o caixão, mas o encontrou vazio. Nele havia só um fundo branco adornado por flores também brancas e um travesseiro de dois ou três dedos, um mimo, cortesia da funerária. Num susto pulou lá dentro e logo estava confortável. Um terço azul pousou entre seus dedos, na mesma cor da gravata. O caixão era aconchegante. Cairia logo no sono, não fosse a mãe esbravejando ao telefone com Eloísa, sem agá, porque ouvia desculpas esfarrapadas para não aparecer. O pai, atônito, não entendia os últimos acontecimentos. Erberth, com agá derradeiro, puxava as orações. O Ugo, estranhamente sem agá, não compareceu. A Martinha ficou no velório por apenas cinco minutos e não se aproximou. O Não Me Conte Futebol Clube mandou uma coroa de flores com a imagem de um gol aberto e os dizeres: sempre será lembrado. Henzo Felisberto, com agá, por favor, dormiu profundamente pela primeira vez em anos, talvez em décadas, com a sensação de dever cumprido.

A lápide foi paga pelo Não Me Conte Futebol Clube. O valor teria sido angariado num jogo vendido, mas isso não importa agora. No cemitério, fica no quarto corredor à esquerda. Lá se encontra com os dizeres: Aqui jaz, sem spoilers, Enzo Felisberto, com um agá pintado de canetinha pela irmã Eloíse, sem agá, quando foi visitá-lo, uma única vez.


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Alexandre Leidens

Alexandre Leidens é um cronista nascido em Gaurama/RS radicado no Paraná, leitor compulsivo, cínico e pessimista. Retrata os meandros do cotidiano com o desdém tragicômico dos velhos ranzinzas. Também trabalha com coisas sérias, mas gosta mesmo é da reclamação e da fofoca. Hipócrita assumido, rouba livros sempre que possível e sem culpa. Adepto do chope gelado e da conversa fiada, só gosta do verão quando vai à praia. Escreve quinzenalmente para o site Crônicas Cariocas.

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